As Moscas (Les Mouches, 1943) representa o início da carreira de Jean-Paul Sartre como dramaturgo e o de seu \"teatro de situações\". Do mesmo ano de O Ser e o Nada - obra-prima do existencialismo sartriano-, a peça é uma versão existencialista da lenda grega de Orestes. Este é o filho do rei Agamêmnon - comandante das tropas gregas na Guerra de Tróia - que, com a irmã Electra, se vinga dos assassinos de seu pai, Egisto e a rainha Clitemnestra, esposa de Agamêmnon e mãe deles. O episódio foi revisitado pelos três grandes poetas da tragédia clássica, Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Em As Moscas Sartre transforma a vingança de Orestes em metáfora para os temas da liberdade e da má - fé e para a crítica à idéia tradicional de \"destino\" como em voga, no governo autoritário de Vichy, durante a Ocupação nazista da França (1940-44). Esse governo, apoiado pela hierarquia da Igreja Católica francesa, difundia uma ideologia \"religiosa\" de culpa e resignação diante da derrota militar frente a Hitler. A peça de Sartre pode, assim, ser lida como apologia ao movimento da Resistência antifascista dos franceses. Neste trabalho realizamos avaliação dos significados do mito em As Moscas. Considerando mas também indo além de seu sentido mais imediato de alegoria política, procuramos, à luz do ensaio clássico de Mircea Eliade de O Mito do Eterno Retorno, esclarecer as bases de um possível diálogo implícito da peça com o \"pensamento mítico\" universal, diálogo o qual é constituído por um movimento de crítica e de re-apropriação existencialista do valor \"arquetípico\" das narrativas míticas. O que se pretende mostrar é, sobretudo, que a peça de Sartre opera uma destruição e recriação do que Eliade chama de ontologia arcaica, estrutura de pensamento \"mítica\" porque calcada em arquétipos ou modelos transcendentes de significação e legitimação das ações e instituições humanas e do mundo em geral. A destruição se dá no contexto do ateísmo de Sartre e de sua crítica ao cristianismo; Sartre denuncia valores morais e religiosos ligados ao que chama de má- fé, tipo de conduta que, na situação específica de Vichy, trai a liberdade humana ao atrelar o poder e a história a certos arquétipos \"celestiais\" e deterministas. Por outro lado, a recriação se deve ao fato de As Moscas representar uma espécie de \"mito fundador\" da liberdade. Concluímos que, ao contrário do que seria de se esperar da perspectiva eliadiana, o existencialismo de As Moscas, anunciando a liberdade como horizonte fundamental da condição humana, não implica necessariamente o esvaziamento da possibilidade da experiência mítica, e sim sua renovação, já não como fuga - senão como revelação - da historicidade radical do homem. / The Flies (Les Mouches, 1943) represents the beginning of the dramaturgic career of Jean- Paul Sartre and of his \"theatre of situations\". Of the same year that Being and Nothingness - the masterpiece of Sartrian existentialism - this play is an existentialist version of Orestes\' Greek legend. Orestes is the king Agamemnon\'s son -the leader of Greek troops for the Trojan War - which, together with his sister Electra, takes revenge against their father\'s murderers, Aegisthus and Clytemnestra, Agamemnon\'s wife and their mother. The story was retold by the main Greek tragedians, Aesquylus, Sophocles and Euripides. In The Flies Sartre transforms Orestes\' revenge into a metaphor for the themes of liberty and bad faith, and into a critic against the traditional idea of \"destiny\", in the shape as it had a good run in the authoritarian govern of Vichy, during Nazi Occupation of France (1940-44). This government, supported by the French Catholic Church\'s hierarchy, disseminated a \"religious\" ideology of guilty and resignation for the defeat against Hitler. Sartre\'s play can, thus, be read as an apology for the anti- fascist Resistance of French people. In this work we study the significations of \"myth\" in The Flies. Considering but also going beyond its more immediate sense as a political allegory, we try, with the aid of Mircea Eliade\' classical essay The Myth of Eternal Return (1949), clarify the basis of a possible, implicit dialogue of the play with the universal \"mythical thought\", dialogue which is constituted by both a movement of critics and existentialist re-appropriation of \"arquetypical\" value of mythical narratives. We intend to show that Sartre\'s play operates some destruction and recreation of what Eliade calls \"archaic ontology\", structure of thought which is \"mythical\" once is based upon archetypes or transcendent models of meaning and legitimacy for human actions and institutions and of the World in general. The destruction happens in the context of Sartrian atheism and his critics of Christianity; Sartre denounces moral and religious values associated to what he calls \"bad faith\", a kind of conduct which, as in the specific situation of Vichy, betrays the human liberty tiding up the power and the History to certain deterministic, \"celestial\" arquetypes. On the other hand, the recreation is linked to the fact that The Flies represents a kind of \"founding myth\" of liberty. Our conclusion is that, in opposition to what would be expectable from Eliade\'s point of view, the existentialism of The Flies, announcing liberty as the fundamental horizon of the human condition, does not represent, necessarily, an impossibility of mythical experience, but its renovation, not as an escape from - but as a revelation of - the radical historicity of Man.
Identifer | oai:union.ndltd.org:usp.br/oai:teses.usp.br:tde-08012008-100616 |
Date | 19 January 2006 |
Creators | Soares, Caio Caramico |
Contributors | Silva, Franklin Leopoldo e |
Publisher | Biblioteca Digitais de Teses e Dissertações da USP |
Source Sets | Universidade de São Paulo |
Language | Portuguese |
Detected Language | English |
Type | Dissertação de Mestrado |
Format | application/pdf |
Rights | Liberar o conteúdo para acesso público. |
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