Introdução e justificativa. A dissociação pode ser definida como a temporária desconexão (patológica ou não patológica) entre módulos psíquicos e / ou motores que se encontram, em geral, sob o controle voluntário ou acesso direto da consciência, do repertório comportamental usual e / ou do autoconceito (Krippner, 1997). As pesquisas internacionais têm sustentado sua recorrente associação com determinadas crenças e experiências alegadamente paranormais e / ou de cunho religioso. Tais crenças e experiências estão também frequentemente correlacionadas com outras variáveis ligadas à dissociação como sintomas depressivos e ansiógenos, queixas somáticas, trauma infantil e transliminaridade. O fato de algumas pessoas apresentarem características psicológicas que as predispõem a tais ocorrências sugere a importância de se compreender melhor como nelas se dá a formação da identidade, seu desenvolvimento cognitivo, emocional e social, de modo a permitir uma abordagem mais ampla de outros aspectos envolvidos nessas alegações e na assunção de várias dessas crenças. A revisão da literatura indica grande quantidade de estudos quantitativos e poucos estudos de natureza qualitativa, com a consequente ausência de aprofundamento em aspectos biográficos e sociais. Até o momento, não existem estudos brasileiros sobre as relações entre dissociação, crença paranormal e transliminaridade. Objetivos. Investigar as relações existentes entre dissociação (e seus tipos específicos), crença e formação da identidade em grupos religiosos e não religiosos de participantes brasileiros; Pesquisar os possíveis fatores etiológicos das experiências dissociativas e das crenças e experiências paranormais, bem como suas interações, a partir do estudo de variáveis psicopatológicas e psicossociais diversas; Investigar o papel dos processos inconscientes na formação e manutenção das crenças e experiências paranormais; Verificar a extensão e o impacto dos processos dissociativos e das crenças e práticas paranormais e religiosas na formação da identidade e na história de vida, com especial atenção ao desenvolvimento afetivo / emocional e social do indivíduo; Aprofundar a compreensão do contexto grupal e social de inserção dos participantes, de modo a averiguar como tal contexto contribui na construção de suas crenças e experiências, e de como estas afetam ou determinam, em contrapartida, esse mesmo contexto; Pesquisar empiricamente o nível de adesão a crenças religiosas tradicionais e outras categorias de crença paranormal em grupos religiosos e não religiosos de participantes brasileiros. Método. De modo a permitir certa generalização para os dados obtidos na pesquisa, bem como, paralelamente, um aprofundamento nos processos individuais e coletivos de construção da identidade, utilizou-se de uma proposta de investigação tanto quantitativa quanto qualitativa. Por meio de questionário sociodemográfico e escalas, compôs-se a frente quantitativa do estudo. No que diz respeito à frente qualitativa, empregou-se entrevistas biográficas abertas, questionário semi-dirigido sobre experiências anômalas / paranormais e observações de campo. Pressupondo-se que determinados contextos religiosos são aparentemente mais receptivos e estimuladores de vivências dissociativas, e que afiliações religiosas mais tradicionais ou mesmo grupos ateístas tenderiam a estimular menos esse tipo de experiências, os participantes do estudo foram divididos em três grupos, com vistas a uma análise mais detalhada dessas diferenças: grupo um (espíritas, umbandistas e membros de círculos esotéricos e ocultistas), grupo dois (outros religiosos e pessoas sem afiliação definida) e grupo três (ateus e agnósticos), abrangendo um total de 1450 respondentes para a frente quantitativa. O único critério de exclusão foi a idade (18 anos ou mais). O número de entrevistas biográficas (22) e de observações de campo (31) foi determinado com base no critério de saturação. No caso das entrevistas, considerou-se também certo equilíbrio em termos de gênero, idade e número de participantes acima e abaixo da nota de corte utilizada para diferenciar high e low scorers em dissociação. Para efetuarmos a análise dos dados, recorremos às hipóteses propaladas na literatura psicológica e sociológica recente acerca das crenças e experiências paranormais e de sua relação com os fenômenos dissociativos, buscando avaliar até que ponto nossos dados confirmavam ou não tais modelos hipotéticos. Nossas avaliações também tiveram como pano de fundo trabalhos que versam sobre os processos de construção psicossocial da identidade no mundo contemporâneo e sobre as transformações mais recentes na família e na religião (Bauman, 2005, 2007; Castells, 1999; Giddens, 2002; Paiva, 2007; Poster, 1979), bem como sobre novas formas de subjetivação e sofrimento psíquico (Roudinesco, 2006), incluindo contribuições de teorias psicodinâmicas atualmente em voga, em particular a teoria do apego (Granqvist & Kirkpatrick, 2008) e a teoria da gestão do terror (Pyzscynski, Solomon & Greenberg, 2003). Principais resultados. O grupo um e o grupo dois não diferiram em termos de dissociação cognitiva, mas ambos pontuaram acima dos ateus e agnósticos. Não obstante, o grupo um obteve média significativamente maior em dissociação somatoforme (sintomas conversivos e psicossomáticos), crença paranormal e transliminaridade comparativamente aos demais grupos. Não houve diferença entre os grupos para os relatos de experiência traumática na infância. A escala de experiências dissociativas correlacionou positiva e significativamente, embora em diferentes graus de magnitude, com a crença paranormal, a transliminaridade, a medida composta de sintomas psicossomáticos, a escala de sintomas conversivos e várias formas de experiência traumática na infância. Todavia, quando controlados os efeitos da transliminaridade, a correlação entre dissociação e crença se desfez, apontando para um possível paper mediador da transliminaridade na relação entre as duas variáveis. A dissociação (somatoforme e cognitiva) não foi elevada nos líderes dos grupos visitados, mas se observou histórico de aparente somatização em alguns casos. Indivíduos com escores elevados na escala de experiências dissociativas denotaram personalidade regredida e impulsiva, além de relatarem mais experiências anômalas espontâneas. Discussão. Sugere-se a existência de dois tipos de dissociação, uma tendencial, outra contextual. Sugere-se também a existência de uma série de mecanismos psicossociais de mimetismo, desempenho de papéis e gerenciamento da impressão que podem passar por fenômenos dissociativos, embora não o sejam. Relaciona-se o fenômeno da crença paranormal, do sincretismo religioso e da dissociação a variáveis sócio-históricas mais amplas, como a procura por sensação nas sociedades contemporâneas, certas consequências do processo de secularização, as relações de consumo, identidades líquidas e uma compensação frente a padrões de apego familiares desorganizados. Relaciona-se a personalidade regredida e impulsiva dos high scorers a formas de defesa narcísicas, a uma maior flexibilidade da barreira entre consciência e inconsciente e a uma manutenção da infância e da fantasia na vida adulta. Associa-se o aumento das crenças paranormais e religiosas com a idade à saliência da morte (teoria da gestão do terror), e certos aspectos da psicodinâmica adolescente ao ateísmo, que se mostrou mais frequente entre adultos jovens e adolescentes em conflito com suas famílias / Introduction and rationale. Dissociative experiences can be defined as reported experiences and observed behaviours that seem to exist apart from, or appear to have been disconnected from, the mainstream, or flow, of ones conscious awareness, behavioural repertoire, and/or self-identity (Krippner, 1997). Research has long sustained a positive relationship between dissociation and paranormal beliefs and experiences. Allegations of paranormal phenomena are also frequently correlated with dissociation-related variables such as depression and anxiety symptoms, somatic complaints, childhood trauma and transliminality. The fact that some people have psychological characteristics that predispose them to such occurrences suggests the importance of studying their identity formation and cognitive, emotional and psychsocial development in order to gain insight into other aspects involved in the assumption of paranormal beliefs. The literature on paranormal beliefs indicates large amount of quantitative studies and few qualitative data, with a consequent gap in biographical and cultural aspects. The majority of studies have also neglected contextual and social variables which are better understood through interviews and ethnographic observations. There is virtually no Brazilian studies on the subject of dissociation, paranormal belief and transliminality. Objectives. 1) To investigate the relationship between dissociation, paranormal belief and associated variables, including its possible impact on the life history and identity of Brazilian respondents from different religious and non-religious groups; 2) To identify some of the possible etiological factors underlying the presumed association between dissociativ eexperiences and paranormal beliefs, from the study of several psychosocial and psychopathological variables; 3) To investigate the role of unconscious and psychodynamic processes in the formation and maintenance of paranormal beliefs and experiences; 4) To improve the understanding of the social context underlying religious and non-religious dissociative practices, in order to ascertain how such a context assist in the construction of certain experiences or beliefs, and, on the other hand, how these beliefs and experiences affect or determine the same context; 5) To explore the level of adherence to traditional religious beliefs and other categories of paranormal belief in religious and non-religious groups of Brazilian participants; 6) To compose a Brazilian sample that could map the associations between the aforementioned variables, aiming to a comparison with data from other sociocultural contexts. Methods. A quali-quantitative approach was proposed. Through socio-demographic questionnaires and psychological scales, it was designed a quantitative online questionnaire. Regarding qualitative techniques, the study employed 1) biographical interviews, 2) semi-structured interviews concerning the phenomenology of paranormal / anomalous experiences and 3) field observations. Assuming that certain religious contexts are apparently more receptive to dissociative experiences, and that more traditional religious affiliations or even atheist groups tend to discourage such experiences, the participants were divided into three groups, with a view to a more detailed analysis of these differences: group one (also called dissociators: spiritualists, umbandists, members of esoteric groups, catholic carismatics and pentecostals); group two (members of other religious affiliations and people without defined philosophical or religious affiliation) and group three (atheists and agnostics), covering a total of 1450 respondents. The only exclusion criterion was age (18-years-old or above). The number of biographical interviews (22) and field observations (31) was determined on the basis of data saturation criterion. For the qualitative interviews, a balance was seek in terms of gender, age and number of participants above or below the cutoff (>= 20) used to differentiate high and low scorers on the Dissociative Experiences Scale. To perform data analysis, we considered some of the most important sociological and psychological hypotheses concerning the relationship between dissociation and paranormal beliefs and experiences, assessing the extent to which our data confirmed or not such hypothetical models. We were also based on works dealing with the psychosocial construction of identity in the contemporary world and the most recent changes in family and religion (Bauman, 2005, 2007, Castells, 1999; Giddens, 2002; Paiva 2007; Poster, 1979), as well as new forms of subjectivity and 7 psychological distress (Roudinesco, 2006), including contributions from psychodynamic theories currently in vogue, particularly the Attachment theory (Granqvist & Kirkpatrick, 2008) and the Terror Management Theory (Pyzscynski, Solomon & Greenberg, 2003). Main results. The group one and group two did not differ in terms of cognitive dissociation, but both scored above atheists and agnostics. Nevertheless, the group one scored significantly higher in somatoform dissociation (conversion and psychosomatic symptoms), paranormal belief, syncretism and transliminality compared to the other groups. There was no difference between the groups for reports of childhood traumatic experiences. The Dissociative Experiences Scale correlated positively and significantly, though in different degrees of magnitude, with paranormal belief, transliminality, the composite measure of psychosomatic symptoms (somatization, depression and anxiety combined), an original scale of conversion symptoms and various forms of childhood traumatic experience. However, when controlling for the effects of transliminality, the correlation between dissociation and belief disappeared, indicating a possible mediator effect of transliminality on the relationship between the other two variables. Dissociation (somatoform and cognitive) was not high on the leaders of the groups visited, but a history of apparent somatization was observed in some of these cases. High scorers on the dissociative experiences scale denoted regressive and impulsive behaviors, and reported more spontaneous anomalous experiences. Discussion. We suggest the existence of two types of dissociation: tendential and contextual. It is also suggested the existence of a number of psychosocial mechanisms of mimicry, role playing and impression management which may be wrongly interpreted as dissociative phenomena. Paranormal beliefs, religious syncretism, new age mentality and dissociative tendencies are hypothesized to be influenced by broader socio-historical variables such secularization and globalization, consumer relations, liquid identities and a compensation for disorganized attachment patterns developed in childhood. The regressive and impulsive personality of high scorers is described in terms of narcissistic defense mechanisms, flexibility of boundaries between conscious and unconscious processes, and a tendency to extend childhood fantasy into adult life. The increase in paranormal belief with age is explained as a result of mortality salience (terror management theory), but also in terms of a generational conflict, as atheism showed to be more frequent among adolescents and young adults in disagreement with their families
Identifer | oai:union.ndltd.org:IBICT/oai:teses.usp.br:tde-18032015-105415 |
Date | 10 October 2014 |
Creators | Everton de Oliveira Maraldi |
Contributors | Wellington Zangari, Jose Francisco Miguel Henriques Bairrao, Silas Guerriero, Fatima Regina Machado, Geraldo Jose de Paiva |
Publisher | Universidade de São Paulo, Psicologia Social, USP, BR |
Source Sets | IBICT Brazilian ETDs |
Language | Portuguese |
Detected Language | Portuguese |
Type | info:eu-repo/semantics/publishedVersion, info:eu-repo/semantics/doctoralThesis |
Source | reponame:Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP, instname:Universidade de São Paulo, instacron:USP |
Rights | info:eu-repo/semantics/openAccess |
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