A separação histórica entre as ciências naturais e as ciências sociais fundamenta-se na distinção ontológica entre os domínios da natureza e da cultura, e na ideia moderna de que a condição (cultural) humana corresponde a um afastamento radical dos outros animais. Porém, somando-se a outros críticos insatisfeitos com essa visão dualista, muitos estudiosos do comportamento animal tem utilizado o termo cultura em referência a não humanos, provocando uma controvérsia que ainda parece longe de um consenso. Neste trabalho, investiguei o sentido da noção de cultura para os antropólogos e o uso etológico (limitando-nos aos primatas) do termo, com os objetivos de compreender melhor a controvérsia e identificar caminhos possíveis na busca por um consenso. Na Antropologia, a noção moderna de cultura se desenvolveu do século XIX até os anos 1950. Cultura passou a ser vista como um fenômeno emergente exclusivamente humano, dependente de nossa capacidade de utilizar símbolos e correspondendo aos padrões e normas comportamentais, artefatos, ideias e, principalmente, valores que os indivíduos adquirem no processo de socialização. Mais recentemente, essa concepção de cultura, e a epistemologia dualista que a sustenta, tem sido alvo de críticas e intenso debate. Ainda que não compartilhem um arcabouço teórico comum, virtualmente todos os antropólogos contemporâneos concordam que o comportamento cultural humano é fundamentalmente simbólico. A discussão recente em torno da atribuição de cultura a primatas não humanos remonta aos estudiosos japoneses que, na década de 1950, acompanharam a dispersão de uma nova técnica de manipulação de alimento em Macaca fuscata, e descreveram o fenômeno com os termos pré-cultura, subcultura e cultura infra-humana. A partir da década de 1960, as pesquisas de campo com populações selvagens e as evidências experimentais de aprendizagem em contexto social levaram ao estabelecimento da Primatologia Cultural e os prefixos foram abandonados. Entre primatólogos, o termo cultura se refere a padrões comportamentais que dependem de um contexto social para se desenvolver, e que podem atravessar gerações. Eu sugiro uma estratégia analítica que distingue os motivos de discordância entre descrições, explicações, teorias e visões de mundo, e argumento que a controvérsia é complexa e inclui discordâncias entre visões de mundo sem, no entanto, dividir os envolvidos em grupos homogêneos (digamos, primatólogos contra antropólogos). Por conta disso, a redefinição e o uso que os primatólogos fazem do termo acabam por manter ilesos os fundamentos da dicotomia natureza/cultura, o que pode explicar, parcialmente, a manutenção da controvérsia. Concluo que o diálogo entre os dois lados da fronteira será imprescindível para os pesquisadores que estiverem interessados em buscar uma abordagem consensual. É possível alcançar um consenso, mas a busca por uma abordagem sintética do comportamento animal que inclua os humanos deverá levar ao abandono ou reconstrução das dualidades natureza/cultura, inato/adquirido e gene/ambiente, e também da atribuição de primazia causal aos genes. Além disso, é necessário discutir a fundo sobre como incluir a questão do simbolismo e do significado em uma perspectiva comparativa / The Western ontological distinction between nature and culture, and the idea that the human (cultural) condition makes us radically different from other animals, are evident in the historical separation between the natural and social sciences. In parallel to other critics of this dualist view, some animal behaviorists have been using the term culture in relation to nonhumans, starting a controversy that is still far from cooling down. In this study, I investigated the meaning of the term culture as used by anthropologists, and also its recent use by ethologists (limiting myself to primatology), in order to better understand the controversy and identify possible paths that might lead to a consensus. In Anthropology, the modern concept of culture developed between the 19th century and the 1950s. It came to be seen as an emergent phenomenon exclusive to human social life. It was dependent on our capacity to use symbols and corresponded to behavioral patterns and norms, artifacts, ideas, and values that individuals acquire in the process of socialization. But this conception of culture, and the dualist epistemology supporting it, have since been largely criticized and intensely debated. Although contemporary anthropologists do not share a common ground or framework, virtually all of them agree that human cultural behavior is fundamentally symbolic. Recent attribution of culture to nonhuman primates started with Japanese scholars who, from the 1950s onward, have followed closely the spread of novel behaviors in Macaca fuscata, which they described with expressions such as preculture, subculture and infrahuman culture. Since the 1960s, field studies on wild populations and experimental research on learning in a social context, have led to the establishment of Cultural Primatology, and the prefixes were abandoned. Among primatologists, the term culture refers to behavioral patterns that depend on the social context to develop and that might be recurrent through generations. I suggest that it might be analytically useful to distinguish the matters of a disagreement between descriptions, explanations, theories and worldviews, and argue that this controversy goes all the way up to the highest reason of disagreement (worldviews). Still, one cannot divide those involved in it into a few homogeneous groups (say, primatologists contra anthropologists). Primatologists redefinition and use of the term do not alter the foundations of the criticized nature/culture dichotomy, and that might at least partially explain the maintenance of the controversy. It is possible to reach a consensus, but the search for a synthetic framework for animal behavior that includes humans might lead to the abandonment or reconstruction of the related dichotomies of nature/culture, innate/acquired and gene/environment, as well as of the causal primacy attributed to genes. It is also necessary to discuss how to include symbols and meanings in a comparative perspective
Identifer | oai:union.ndltd.org:IBICT/oai:teses.usp.br:tde-25072012-092135 |
Date | 17 April 2012 |
Creators | Murillo Pagnotta |
Contributors | Briseida Dogo de Resende, Patricia Izar Mauro, Eliane Sebeika Rapchan |
Publisher | Universidade de São Paulo, Psicologia Experimental, USP, BR |
Source Sets | IBICT Brazilian ETDs |
Language | Portuguese |
Detected Language | Portuguese |
Type | info:eu-repo/semantics/publishedVersion, info:eu-repo/semantics/masterThesis |
Source | reponame:Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP, instname:Universidade de São Paulo, instacron:USP |
Rights | info:eu-repo/semantics/openAccess |
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