Esta pesquisa aponta alguns dos efeitos subjetivos e estratégias singulares de resistência frente à desigualdade racial no nosso país, abordando as vicissitudes de inscrição no laço social de mulheres negras e pobres. É fruto de uma intervenção clínico-política com um grupo de adolescentes em uma Escola Municipal de Ensino Fundamental de São Paulo na qual foi se evidenciando, para nós, a necessidade de cada um desses adolescentes de defender intransigentemente a honra e o valor de suas mães frente aos outros membros do grupo. Tanto pelo seu excesso como pela sua repetição, essa situação nos sugeria um mal-estar e um não dito referido às configurações familiares e à posição destas mulheres nesta comunidade escolar, que nos levou a escutá-las. Tomando a indicação freudiana de que a psicologia individual seria também psicologia social e a formulação lacaniana de que podemos considerar o Inconsciente como sendo a Política, acreditamos ser indispensável escutar o sujeito levando em consideração o Outro, entendido tanto do ponto de vista sócio-histórico, como libidinal. Isso significa que não poderíamos escutar estas mulheres sem considerar o campo de desigualdades sociais e raciais no qual estavam inscritas discursivamente, o que nos exigiu uma interlocução fundamental tanto com pesquisas da antropologia social e da sociologia, como da história. A fala destas mulheres foi nos revelando que, além de outras identificações contingentes, o fato de serem reconhecidas e se reconhecerem como mulheres negras era um elemento fundamental nas suas vivências cotidianas. Uma vez que nosso passado escravista não teria sido suficientemente lembrado e admitido, alguns traços se fariam presentes através de uma transmissão simbólica, pelos subterrâneos da cultura, de uma posição de servidão a elas atribuída. Permaneceria de uma forma atualizada e insidiosa uma divisão racializada da nossa sociedade, ancorada na herança de uma cisão entre a mulher mundana cujo corpo seria visto como um corpo de gozo, mas sem valor social, a mucama, e a que seria valorizada socialmente à custa de um corpo assexuado, casta e educada, esposa do senhor de escravos. Apesar de tantos avanços, as conquistas femininas das últimas décadas não seriam totalmente estendidas a essas mulheres, negras e pobres, que seguiriam, frequentemente, apresentando no imaginário social um corpo ao qual se atribuiria a capacidade de satisfazer os desejos mais inconfessáveis de um homem à custa de ser visto como propriedade e domínio deste. A atitude racista se faria presente em relação a elas, entendida como o ato de segregação do gozo inadmitido de um sujeito no corpo de um outro, ou ainda, como Lacan apontou, impondo a um outro, seu modo de gozo. Mais do que uma identidade das mulheres negras, consideramos fundamental conceber a particularidade de um laço que se estabeleceria na relação com elas, na medida em que seu corpo seria capaz de despertar e revelar a relação do sujeito com o mais íntimo e insuportável de si mesmo: ela seria a estrangeira frente a um homem, por ser mulher; e seria estrangeira frente a uma mulher ou homem branco, por ser negra. A sua condição de estrangeira a deixaria assim como figura paradigmática de um Outro sexo, um sexo Outro, um gozo Outro, recaindo sobre ela as reações mais violentas de extirpação desse gozo. As estratégias de como manter o que seria próprio do gozo feminino não balizado pelo gozo fálico, posto que seria suplementar a ele frente a essa injunção de segregação e depreciação, seriam sempre singulares. Apresentamos um caso clínico, Silvana, apontando suas estratégias de resistência frente a um discurso social que a desqualificaria tentando lhe impor um estreitamento de sua vida erótica e sua redução a um modo único de gozo / This research points out some of the subjective effects and peculiar strategies of resistance against racial line quality in our country, addressing the vicissitudes poor black women face to inscribe themselves in the social bond. It is the result of a clinical-political intervention with a group of teenagers in a São Paulo Municipal Basic Education School that revealed to us the need for each of these teenagers to defend the honor and the value of their mothers uncompromisingly before the other members of their groups. Both for its excess and for its repetition, the situation suggested a malaise and a non-said regarding the family configurations and the position of these women in this school community, which led us to listen to them. Taking the Freudian indication that individual psychology would also be social psychology and the Lacanian formulation that we can consider the Unconscious as Politics, we believe it is essential to listen to the subject taking into account the Other, understood in both the socio-historical and the libidinal perspectives. This means that we could not listen to these women without considering the field of social and racial inequalities into which they were inscribedin discourse, and that required us to have a fundamental dialogue with researches in social anthropology, sociology and history. These women´s speech revealed to us that, in addition to other contingent identifications, the fact that they are recognized and recognize themselves as black women was a key element in their daily experiences. Since our past of slavery was not sufficiently remembered and admitted, some traits of it are still present by means of a symbolic and inexplicit transmission by culture, that assigns to these women a position of servitude. In an updated and insidious form a racialized division of our society persists, anchored in the inheritance of a scission between the maid the worldly woman whose body is seen as source of pleasure, but without social value and the slave-owner´s wife, socially valued at the cost of a sexless body, chaste and educated. Despite many advances, women\'s conquests of recent decades are not fully extended to these black and poor women, who often still figure in social imagination as a body capable of satisfying the most unspeakable desires of a man at the cost of being seen as his property and domain. The racist attitude towards them is present, understood as the act of segregating the non-admitted juissance of a subject in anothers body, or, as Lacan pointed out, imposing upon another their mode of juissance. More than black women´s identity, we consider it essential to design the particularity of a bond that is established in relation to them, to the extent that their bodies would be able to awaken and reveal the relationship of the subject with the most intimate and unbearable of himself: the black woman would be the foreigner in face of a man, as a woman; and she would be a foreigner in face of a white woman or a white man, being black. Her condition as a foreigner makes her a paradigmatic figure of an Other sex, a sex Other, an Other juissance, and the most violent reactions of extirpation of that juissance fall upon her. The strategies aimed at maintaining what would be specific of feminine juissance -not guided by phallic juissance, since it would be supplementary to it against this injunction of segregation and depreciation are always unique. We present a clinical case, Silvana, pointing her strategies of resistance against a social discourse that attempts to disqualify her, trying to impose a narrowing of her erotic life and its reduction to a single mode of juissance
Identifer | oai:union.ndltd.org:usp.br/oai:teses.usp.br:tde-10052016-104955 |
Date | 19 February 2016 |
Creators | Braga, Ana Paula Musatti |
Contributors | Rosa, Miriam Debieux |
Publisher | Biblioteca Digitais de Teses e Dissertações da USP |
Source Sets | Universidade de São Paulo |
Language | Portuguese |
Detected Language | English |
Type | Tese de Doutorado |
Format | application/pdf |
Rights | Liberar o conteúdo para acesso público. |
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